quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

"Todos estamos sob o mesmo céu, mas não temos o mesmo horizonte "Konrad Adenauer"

 Eu sou do tipo que decidiu fazer Jornalismo porque Letras, à época da escolha da profissão, era para mim coisa de dona-de-casa. Paguei a língua e me dobrei ao chamado, pois hoje nada mais sou do que uma dona-de-casa letrada. Letrada não porque devoro livros, revistas, jornais, mas por ter dois diplomas -  guardados e não pendurados na parede para todos verem - de jornalista e de professor de língua inglesa e portuguesa. A primeira profissão muitíssimo pouco exerci; a segunda, exerci por poucos anos, apesar de gostar muito. Ambas demandam platéia e palco, seja a tela da televisão, as estações de rádio, as páginas do jornal, a internet ou o tablado do professor. E, aos 38 anos, saí das luzes da ribalta pra me tornar por opção dona-de-casa e mãe por  24/7 e esposa por uma fração disso.
Na minha rotina, não encontro tempo pra leitura, mas não o encontro porque não o procuro. E me corroo por isso. Sou preguiçosa, indisciplinada e contrariamente de um auto-controle que me dá pânico e me deprime. Não vivo um dia após o outro, sofro por antecipação e por tédio por não agir e só pensar no que poderia ter feito ou posso fazer mas não tenho vontade de. É estranho escrever e não ter o hábito regular e salutar da leitura, da viagem nas linhas, da imaginação, do conhecer o que outros escrevem e pensam, do espairecer, da comida para o cérebro. Com isso, posso até correr o risco de ser acusada de plágio ao escrever algo que acho ser seminal ou meramente diferente e nada mais é do que algo que já foi criado, digerido e divulgado.
Reclamo que não falo alemão direito, que não leio, que não estudo e sei qual é o problema. Sou eu mesminha. Me sinto e sou dominada pelas responsabilidades doméstico-maternais que me chamam incessantemente: lavar, passar, cozinhar, levar pra escola, estimular, dar de comer, dar banho, limpar o chão, tirar pó, lavar carro, tirar o lixo, lavar banheiro, limpar janelas...Manhêeee!!!! Seria um prazer, já que é foda, mas chega uma hora que deixa de ser, pois tudo que é repetitivo e esgotante passa a ser obrigação por não terminar nunca. Pra quem só faz isso, o alarme fica ligado o tempo todo. É preciso um tempo pra espairecer. E espairecer não quer dizer descansar, dormir, mas fazer algo diferente que demande outros músculos, outros órgãos. O trabalho de casa é extenuante e emburrecedor e mina nossa capacidade mental. E eu estou muito nova pra abraçar aquele alemão que deixa a gente doida. Por isso, eu preciso escrever. E pra mim, escrever significa não ter tempo pra ler. Back to square one.
Além de ser dona-de-casa, você trabalha?
Quando eu trabalhava como professora de inglês na Cultura Inglesa, meu marido brincava dizendo: "Além de ser professora, você trabalha?" Era uma piadinha que saiu do mesmo buraco de onde veio meu preconceito adolescente contra estudar Letras. E eu transfiro essa "piadinha" para o trabalho doméstico. O que se ouve muito, principalmente em sociedades machistas, é que quem fica em casa pode fazer seu tempo, pode descansar nos intervalos feitos por si mesma e que não existe compromisso com hora marcada. Portanto, só quem traz o dinheiro pra casa, quem põe o pão na mesa é que  precisa descansar no fim do expediente, no final de semana, nas férias (Ãh? Férias? O que é isso?)
Eu sempre digo que o meu jeito de ganhar dinheiro é não gastando, me dedicando à família. E esse foi o acordo quando decidimos vir para cá. Mas, em vez de sucumbir ao destino, me sinto subutilizada e paradoxalmente esgotada. Ao mesmo tempo, eu tenho um auto-controle tão grande que eu sofro por pensar em estar sob o controle de compromissos profissionais e de chefes. Sou avessa à hierarquia, à submissão. Mas me submeto à minha própria tirania.   Não sei deixar a vida me levar, empurrá-la com a barriga, deixar a água correr, deixar como está pra ver como é que fica, mas não sei também ser o agente e fico na passiva.
Me convenço que é melhor como está. Se tivesse que sair de casa todos os dias para trabalhar, teria que deixar minha filha na escola o dia inteiro; teria que limpar a casa no fim de semana ou ter alguém para  limpá-la; teria que ir às compras depois do expediente; se a filha ficasse doente, teria que ter uma babá ou faltar ao trabalho, pois não tenho familía por perto. Não veria minha filha crescer.
Que prazer esse sentimento de realização, essa sensação de ser produtiva me daria? Seria ele verdadeiro? Talvez. Existem milhares de mulheres que trabalham, são mães e esposas. Se sentem realizadas e se gabam por isso. Bom pra elas. Mas acho difícil conseguir ser bom em tudo ao mesmo tempo. Alguma coisa, no meu caso, sairia mal feita e como eu me conheço, teria uma síncope por isso. Me culpo por não ser tão flexível, apesar de que aqui na Alemanha não estou tão por baixo, pois ser "só" dona-de-casa e mãe tem seus méritos -ao contrário do que acontece no Brasil, onde ao "só"  cuidar dos filhos e afazeres domésticos, ou você está desempregada ou  é vagabunda ou  é dondoca.
Quando meu pai foi internado e precisava de alguém com ele dia e  noite, ouvi da ex-cunhada  que o meu irmão não poderia ficar com meu pai à noite porque o trabalho dele dependia de  estar alerta para dirigir nas ruas de São Paulo e que, se não dormisse, poderia sofrer um acidente e ela e o filho não poderiam viver sem ele ( o engraçado é que agora ela lhe deu um pénabu). E ela me disse: "por que a sua irmã  que não trabalha não fica com o seu pai todas as noites já que ela não tem compromisso com ninguém?" Eu fiquei chocada. Isso vindo de uma mulher? E eu desci do meu chinelinho de feltro e disse que "o fato de ela ser dona-de-casa não quer dizer que não tem responsabilidades. Ela tem uma família que depende dela também." Me ofendi  por também ser dona-de-casa e ter deixado minha filha de três anos de idade com meu marido para ir até o Brasil e ficar ao lado do meu pai por 10 dias antes que ele partisse. E por ter respondido ao comentário infeliz que fez, ela  passou a me ignorar e, alguns dias atrás, disse que eu só penso no meu umbigo e o pior, que ela é melhor do que eu".
Já é muito difícil ouvir de um homem palavras de rebaixamento como essas, quanto mais de uma mulher. Me vem na idéia como muitas mulheres que trabalham se sentem superiores em relação às que não. Como se elas tivessem uma força superior dentro de si, como se fossem melhores, como se tivessem alcançado o ápice do sucesso em suas vidas e em suas carreiras. E me lembra uma citação que li num livro quando ainda estudava jornalismo, mas que naquela época não teve peso nenhum sobre o meu pré-conceito contra ser dona-de-casa, mas que agora o sendo me dá um certo acalanto: "We all want to be a success in life. Some achieve heights of fame in their fields, others live quiet lives. Yet who can say that they are not equally successful?"Esther York Burkholder (Nós todos queremos ser um sucesso na vida. Alguns alcançam o topo da fama em suas áreas, outros vivem vidas tranquilas. Entretanto, quem pode dizer que estes não são igualmente bem sucedidos?)
E assim me vejo: como uma pessoa que abraça suas responsabilidades, que tenta se admirar pelas pequenas, mas não menos importantes, realizações, e evita lamentar ( o que não quer dizer que não lamente. Prova disso é este post) o que deixa de fazer, fazendo o que é possível.  Mas também que fica muito puxa da vida quando não tem seu esforço reconhecido. Por isso, nem venha me dizer que eu não tenho o que fazer pra escrever um post deste tamanho que nem eu mesma entendo, pois o escrevi entre tirar roupa da máquina, buscar a Lara no Kindergarten e por comida no fogo. Agora vou por louça na máquina ( é , ainda tenho este luxo) e já vou  sair pra levá-la ao curso de pintura. Desculpem o desabafo. Já vou escovar os dentes.

15 comentários:

  1. Onde eu assino?

    Eu ainda adicionaria o fato de que, na Alemanha, com maior qualidade de vida e sem custos adicionais como o plano de saúde privado e escola particular para os filhos, não é necessário ter duas rendas para cobrir esses gastos extras, como no Brasil.

    Mas, tb tenho minhas experiências... ;)

    Quando eu avisei que vinha pra cá, minhas tias me perguntaram o que eu ia fazer. Eu disse que iria estudar alemão. Aí elas me perguntaram se não iria trabalhar, eu respondi que sem alemão não conseguiria emprego.
    Com cara de espanto, elas perguntaram: "E vai viver como?", "Do meu marido", respondi. Elas me olharam com uma cara de horror que só tirando foto pra saber. E, intimamente, sei que uma sonha em, literalmente, ser dondoca.

    Bjs!

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  2. Ei Arlete!

    Mas por ser tão apertado o tempo para vc escrever , que cada vez mais vejo simplicidade em ler os seus textos, pois o essencial, o sem lenga lenga é dito! Com isso é possivel que eu constate, que sua vida também é feita em atenção ao que merece e vale a pena, ao meu ver isto significa qualidade de vida...

    Legal ver sua disposição!

    Bjus

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  3. Arlete, me ver dona-de-casa me fez rever todos os meus conceitos. Foi duro de aceitar, quando finalmente aceitei que isso não mudaria quem eu sou, não diminuiria meus talentos ou qualidades, nem demarcaria o meu valor, passei a ser mais feliz. É um processo que não é fácil e é a situação mais "under rated" que uma mulher pode ter. Ninguém valoriza uma mulher que cuida da casa e da família, mas todos sabem como é bom ter uma (seja ela a mãe, seja a esposa). Não é fácil.
    Estarei em Bonn terça-feira, que tal tomarmos um café? =)Se tiver tempo: flor@artedaflor.com
    Beijos

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  4. acho que cada um tem que decidir como se sente bem. Alguns so se sentem bem trabalhando, outros ficando em casa. Eu terminei a faculdade e ate agora, depois da mudanca toda pra Munique, nao consegui emprego. Muitos falam: "ai, que horror, arranja logo alguma coisa. Vc nao quer trabalhar?". E eu respondo: Primeiro que eu estou a procura de algo da minha area, que é dificil.Segundo, eu nao tenho problema nenhum em ficar em casa por um tempo. Na verdade, estou curtindo ao maximo ;) Acho que a gente sempre tem que fazer o melhor da situacao e aproveitar cada momento...seja ele no trabalho, em casa, com as criancas. O importante é cada um estar satisfeito. bjs!

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  5. Eve,
    Você está certíssima. Só um país que vê os méritos da dona-de-casa e mãe é que provê e faz com que as empresas façam o mesmo para as mulheres. E a atitude das suas tias é super normal no Brasil. As mulheres lá são extremamente machistas e produzem filhos homens machistas também, perpetuando a especie.
    Gui,
    Você me acompanha desde o começo do blog e em seus comentários percebo que você será um ótimo companheiro, como já disse anteriormente. Quanto à simplicidade, segundo Da Vinci, ela é o último grau de sofisticação. Não adiante ser verborrágica e preciosista e dificultar o entendimento do que queremos dizer so pra se mostrar.
    Flor,
    Vou dar uma olhada na minha agenda de dona-de-casa e te escrevo hihihi
    Beijos a todos

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  6. Mi,
    É isso aí, dê o tempo que for necessário para você se encontrar como mulher. Satisfação é o primeiro passo para a realização pessoal. Estou tentando aprender e não levar tanto em consideração o que os outros dizem.
    Beijos

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  7. Arlete, que graça tem a vida, senão a graça que damos a ela? Não abandone seu senso de humor e capacidade de aprumar o caráter com a experiência. Essa é a verdadeira carreira da gente. E, além do mais, existe orgulho maior do que uma família feliz? É tão simples, meu Deus, para quê complicar? No fundo, no fundo, o que todo mundo quer é o que nós temos. Mas nunca sabemos disso, até que perdemos.

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  8. Marcooo,
    Meu sobrenome é complicação. Mas eu vou aprender, nem que seja batendo a cabeça na quina da mesa quando estiver fazendo faxina.
    Que que tu tá esperando pra escrever seu livro? Tempo? Então, tá frito.hihihi.

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  9. É difícil imaginarmos algo com tanto fervor enquanto ainda estamos naquela fase de fazer planos, onde tudo ainda está pra acontecer e depois vermos que tudo não passou disso, de planos... chega a ser dolorido de tão frustrante, então parece que o que formos, não importa o quê, não valerá mais a pena, pois nada deu certo.
    E num belo, acordamos com um novo ponto de vista sob nossos olhos, e a vida começa a valer a pena, e as coisas parecem caminhar como devem caminhas e descobrimos nosso lugar no mundo, e descobrimos que ainda podemos fazer muito e descobrimos o quão importante somos, e que sem nós, poeirinhas, esse mundo jamais giraria da maneira certa... e que podemos fazer sempre mais.
    Arlette, não se deixe abater pela rotina... Chico (Xavier) já disse, "não podemos voltar e fazer um novo começo, mas podemos começar agora e fazer um novo final". Sempre penso nisso quando me vem o abatimento por ter me formado, por não estar trabalhando, por querer fazer uma outra faculdade e depois por pensar que devo fazer valer o dinheiro gasto no curso que já fiz... é uma torta de várias camadas, com vários sabores... é o dia pós dia. Beijos, luz e paz para vc e sua família.

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  10. Alessandra,
    Eu até gosto da rotina e não lido bem com situações inesperadas, pois sou um poço de controle. O que corroi é o meu constante mal estar comigo mesma que chega a ser mal ser.
    Mas passa. Já passou várias vezes, o problema é que volta, parece bumerangue.
    Bjs

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  11. Oi,
    Subscrevo e assino cada palavra do seu post....
    Como já escrevi um dia, você tem o dom de pôr no "papel" aquilo que me vai na alma.... Muitos parabéns!!!
    Vou enviar este post a todos aquele que me criticam por não ter um emprego numa empesa mas que no fundo queriam era ter o previlégio de estar mais disponivel para a familia. Como eu própria digo: "É para quem pode e não para quem quer!"
    Bjs

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  12. Joana, querida,
    Somos almas irmãs. E você não devia nem dar ouvidos a ninguem, somente ao seu barrigão, que está lindo e que vai murchar loguinho,loguinho. Tô curiosa pra ver a carinha do João.
    Beijos
    Ah, me liga que preciso falar com você.

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  13. Nossa Arlete, amei o post e serviu para refletir sobre o tantim de orgulho que tenho em ter uma profissão e o olhar que endereço as que não tem. Perfeito mesmo, você escreve muitíssimo bem e expõe com maturidade e inteligência.

    Parabéns!

    Glagla

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  14. Glagla,
    Obrigada pelo elogio. Fico feliz de ter colaborado na mudança do seu modo de pensar. Mas não deixe de ter orgulho do que você é e do que conseguiu. Só mude o olhar sobre aqueles que tomaram rumos diferentes na vida, ou por opção ou por falta dela. E continue me visitando.
    Bjs.

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