quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Amélia nasceu na Índia

  Fomos convidados por um colega de trabalho do Amanzor para um jantar em sua casa, juntamente com  um casal inglês, um romeno e um americano. O que embananou o meio de campo foi o fato do anfitrião e sua família serem indianos. Por que será?
Quando mudamos para a Alemanha, apesar de ser um país do Ocidente, houve uns choquinhos culturais, sociais, alimentares, línguísticos etc. Mas não tivemos receios em relação à religião, economia, dress code, leis absurdas ou extremamente diferentes das brasileiras. Imagino que num país do Oriente eu viria a ter problemas sérios. E este convite foi pra mim um test drive.

Presente

 Quando somos convidados pela primeira vez à casa de alguém, é costume alemão levar algum presente em agradecimento pelo convite. A dificuldade começou daí. Levar vinho? Levar flores? Levar alguma coisa pra casa? Como eles têm  duas crianças, uma de 6 anos e um de 1 ano e meio, pensei em levar presente para eles, mas fiquei com receio de levar algo inadequado. Não sabia se havia alguma restrição quanto a brinquedos ou chocolate, por exemplo. Então, resolvi comprar um livro com dicas de lugares para passear com as crianças aqui na Alemanha. E pra não cometer nenhuma gafe ou me sentir tentada, nem máquina fotográfica levei.

Deuses indianos X deuses tecnológicos

Nunca tive vontade de ir à India,  mas,  nesta visita, tive a sensação de um pouquinho da Índia ter vindo até mim. Quando chegamos, Parkash, o anfitrião, que é super simpático mas que se negou a me cumprimentar no rosto, começou a nos apresentar o templo cheio de deuses que fica na sala de estar. Foi engraçado porque ele falou sobre eles com um certo humor. Sobre um deles ele disse: "Este é o deus que me protege quando eu viajo mas só se eu deixar 1 euro pra ele. Como ele não exige muito, é melhor não arriscar". Como os deuses eram muitos, inclusive alguns ainda vivem na Índia, ele disse que aquela aula tinha acabado e o resto ficava pra próxima. Enquanto isso, as crianças brincavam de Wii com uma televisão de tela plana enorme numa estante repleta de DVDs. A dona da casa, Krathi, estava na cozinha, veio nos cumprimentar e retornou.

Etiqueta ou nós à mesa...

Como receber convidados e como se comportar  à mesa  definitivamente varia de cultura para cultura e o que conhecemos por etiqueta é o que foi criado nesta banda do planeta. É à mesa que mais sentimos o choque cultural, tanto pelo que é servido, quanto pela forma de comê-lo.
Não havia mesa posta, nem pratos, nem talheres dispostos, somente pratos de papelão para os restos. Krathi trouxe a entrada: carré de ovelha e coxas de frango, com os ossos devidamente embrulhados em aluminio para se comer com as mãos. Como indiano gosta de comida apimentada e eles tem consciência disso (mas não muita), alguns dias antes, fomos perguntados se gostávamos de comida "temperada" e o Amanzor pediu para ser mais suave, se possível. O difícil é saber o que eles consideram mais suave. Na dúvida, eu tentei dar janta pra Lara em casa mas ela não quis por ser muito cedo. Então, resolvemos arriscar e ver se ela comeria alguma coisa. Krathi então nos mostrou o prato com a carne supostamente sem pimenta. Experimentei e quase perdi o fôlego. Tive a sensação de ter soltado fogo pelas ventas. Definitivamente, a Lara não comeria e nem eu deixaria que ela comesse.  Em contrapartida, a menina de 6 anos se serviu dos mais apimentados e saiu lambendo os beiços e os dedos. Depois, ela retornou à mesa com uma prato cheio de arroz branco ( que eu achei ser a minha salvação) e um creme branco por cima, que o pai disse ser iogurte natural sem tempero. E aí ela começou a comer aquela meleca com as mãos. E eu tive que parar de olhar (podem me chamar de nojenta).

...e a esposa na cozinha

Me senti mal de estarmos todos na sala e a esposa sozinha na cozinha preparando as coisas. Fui até lá conversar e tentar ajudá-la mas, assim que cheguei, ela parou o que estava fazendo. Comecei a conversar mas vi que, se continuasse ali, iria atrapalhá-la, pois ela parou pra me dar atenção. Daqui a pouco, o marido, da sala, manda ela servir o jantar.  Ela deve ter passado o dia inteiro cozinhando. Trouxe os panelões de comida: um creme de camarão seco, cubos de carneiro fritos, um arroz com frango parecido com risoto só que mais seco, uma sopa de vegetais com curry (só pra variar), o salvador arroz branco e potes e potes de iogurte natural. A aparência da comida estava ótima, mas infelizmente tudo tinha o mesmo gosto: pimenta, pimenta, pimenta, curry, curry, curry. Exceto o arroz, que não tinha gosto nenhum porque foi feito sem tempero algum. E pra que o iogurte? Pra aliviar a queimação da pimenta. Ã? Será que eu entendi direito? Eles enchem a comida de pimenta e depois comem iogurte natural pra aliviar? Pra mim isso é sofrer duas vezes. O Romeno teve que pedir socorro, pois a água não estava aliviando, e mandou pra dentro dois potes de iogurte, que disse ter sido o melhor iogurte que já comeu na vida, pois veio na hora certa.

Só olhando

Eu me servi de camarão e arroz branco. O camarão era seco e com casca. Comi super pouco e fui surpreendida com um "você só comeu isso? Tem que comer mais". Acho que pelo costume deles eu fui mal educada, pois me neguei a comer mais dizendo já estar satisfeita. Foi aí que percebemos que eles não estavam comendo. Perguntamos se fazia parte da tradição indiana não comer junto com os convidados. Eles disseram que antigamente era assim mas que agora eles simplesmente não estavam com fome. Depois de uns 40 minutos se serviram. Hora da sobremesa: uma bacia de frutas cortadas em cubos para serem comidas coletivamente com as mãos ( ou garfo se você não se sentisse à vontade).

Casamento

Depois dizem que brasileiro que é cara de pau e pergunta as coisas na bucha. A inglesa perguntou se o casamento deles tinha sido arranjado pela família. E Parkash disse: "Claro!". E a inglesa quis saber como foi. Ele estudava na Malásia - hoje é especialista em sistemas de informação -  e toda vez que voltava pra casa a família dizia que estava na hora de casar, mas ele conseguia postergar. Então, teve uma vez que ele retornou e o pai já estava com 4 ou 5 pretendentes preparadas. Ele teve que visitá-las e escolher uma delas, sem nem mesmo poder ver o rosto direito pois elas tem que manter o queixo no peito e não olhar para o pretendente. Ele escolheu Krathi e, sem terem conversado, se casaram - há 9 anos. A inglesa perguntou se ela pensou em rejeitá-lo. Ela disse que isso não passa pela cabeça das mulheres indianas, pois elas devem respeito aos pais e o que eles decidem é o melhor para elas. Pensei cá com os meus botões, essa é a verdadeira Amélia, o que não quer dizer que é a mulher de verdade, só uma variação sobre o mesmo tema.

Educação

Se por um lado não invejei a situação de Krathi como mulher, por outro, a admirei como mãe - e posso dizer que ela me pôs no chinelo e me enrolou no Sari. Ela disse ter alfabetizado sua filha em inglês quando esta tinha 3 anos e que nas últimas férias, resolveu ensinar Tamil, a sua lingua mãe,  para a menina. Ela teve a disciplina de durante todos os dias das férias, por uma a duas horas diárias (redundar para enfatizar), ensinar o alfabeto de  247 caracteres e que mais parece um bordado do que letra. E a menina, já sabe ler e escrever isso, além de já sabe tocar piano muito bem. Meus deuses!!!

Despedida

A Lara costuma ir dormir por volta das oito e meia, nove horas da noite. Sempre foi assim ou mais cedo. Já eram 23h30 e perguntei a que horas o bebê costumava ir para a cama e disseram que nunca antes da meia-noite. Nossa! Que ânimo o dessa mulher! Mas eu já tinha perdido o fôlego fazia tempo e então resolvemos nos despedir. Qual não foi a nossa surpresa quando Parkash nos trouxe uma embalagem enoooooorme de chocolate para a Lara. E eu que estava achando que chocolate para as crianças deles não seria um bom presente!
Foi uma noite com conversa super agradável, fartura de simpatia e de comida, apesar dos meus olhos cheios d´água. Foi bom ver que diferenças culturais, alimentares, religiosas não nos fazem menos humanos ou  mais porcos ou mais certos ou mais errados - em algum lugar do mundo isso é normal, é ser igual, independente de classe social ou casta. Foi bom ver que  não é necessário se adaptar a tudo quando vivemos num lugar diferente e que nossas convicções pessoais ou culturais podem ser mantidas, sem vergonha de distoarmos da maioria. Dizem que em terra de sapo de cócoras com eles, mas também  dizem que it takes all sorts to make a world e também que one man´s meat is another man´s poison. Já pensou que chato e entediante se todos fóssemos, pensássemos e agíssemos iguais?


Exemplo de uma palavra escrita em Tamil
Me perdoem os que sabem ler se o que estiver escrito for palavrão.

10 comentários:

  1. Pois é, essas diferenças culturais fazem também com que a gente mande umas gafes horríveis... aqui conversando com o indiano (que já falei em meus e-mails), perguntei se ele comia carne. Ele disse que não, e fez questão de falar (aquilo que já sabemos) que na índia vaca é sagrado. Aí eu, sem pensar muito, disse: "Pra mim também é: na minha barriga."
    Não sei se ele não ouviu ou fingiu que não (espero que a primeira), mas não deu muita atenção ao meu comentário. Eu, percebendo a bobeira, tratei logo de mudar de assunto...

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  2. outro costume estranho, não sei se desse indiano em particular ou se é geral isso, são os arrotos vibrantes que ele solta após comer. Na frente de quem seja (incluindo uma menina - indiana - que ele conheceu tem uns 2 dias).
    E você falando do arroz, lembrei também desse rapaz, cozinhando numa panela de pressão um arroz completamente seco e sem tempero, abrindo e depois comentando que estava perfeito. Como não tinha alho, nem cebola nem alecrim, na minha opinião estava longe da perfeição, mas fazer o que... costumes, né?
    Perguntei ainda pq ele não sai e come fora (o próprio Mensa tem todo dia um prato vegetariano), mas ele diz que está acostumado a aquele tipo de comida. Na minha preconceituosa opinião, frescura. Quem vem pra um lugar bem diferente do ninho tinha pelo menos que experimentar...

    mas apesar de tudo, foi a pessoa mais simpatica até agora que conheci aqui (embora seu inglês continue sendo horrivel). Então é isso mesmo que você falou. Diferenças à parte, somos todos farinha do mesmo saco.

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  3. Ótimo, dei muita risada e reforcei que a diferença é que traz prosperidade, os alemães estão de olho nisso... muito sangue rolou para eles aprenderem.

    Valeu o relato! Mt bom!!!

    Bjs

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  4. Oi, Dani,
    Arrotar faz parte da etiqueta deles. Eles não comem carne de vaca mas comem muito carneiro e frango.
    Oi, Gui,
    A Alemanha está tentando aceitar as diferenças, mas nem tanto. Ainda é difícil ser aceito, seja por ser estrangeiro ou por ter feições diferentes, ou não saber falar a língua direito. A segregação ainda existe, infelizmente.
    Marco,
    Obrigada pelo excelente, vindo de você é um premio Nobel.
    Beijos

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  5. Peraí, a India tem uma variedade cultural e religiosa intensa. Portanto, não sei se arrotar vale pra todas as regiões, religiões e castas sociais de lá. Sem generalizar, ne?

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  6. by the way, fiquei sabendo por um dos indianos daqui, que na índia existem oficialmente 16 idiomas, que de acordo com ele a maioria não se parece nem um pouco com o outro. "Oficialmente", pq além desses existem muitos dialetos, variações, misturas, "idiomas de fronteira", etc, etc... enfim, uma verdadeira salada.
    A conversa começou pq um russo perguntou o motivo dos indianos daqui conversarem em inglês entre si, já que todos vêm do mesmo lugar...

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  7. Cada dia me surprendo mais com as diferenças culturais, mais ao mesmo tempo, já aprendi a "fingir que não" rsrsrsrs. Pois como dizem, cada um é cada um!
    Lá na UN, eles servem todo dia comida indiana. Dá pra acreditar? Como você disse, tudo parece ter o mesmo gosto. E apimentado! A maioria das pessoas nem vai mais lá...

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  8. É Dani e Bia, como disse a respeito de arrotar, a língua também não é uma só. Acho que eles variam tanto de região pra região em termos de línguas, deuses e vestes e comportamentos que eles tem que compensar fazendo a comida ter um gosto único. Acho eu.

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  9. Arlete,
    simplesmente amei o post. Sabe que morro de medo desses jantares ou almocos. Nao sou muito fa de provar comida diferente. Com esse cardapio que voce descreveu, certamente nao comeria absolutamente nada. Existem mesmo muitas diferencas, mas com respeito e amor aos outros essas diferencas passam a nao terem nenhuma importancia.
    Beijos

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