Eu sou do tipo que decidiu fazer Jornalismo porque Letras, à época da escolha da profissão, era para mim coisa de dona-de-casa. Paguei a língua e me dobrei ao chamado, pois hoje nada mais sou do que uma dona-de-casa letrada. Letrada não porque devoro livros, revistas, jornais, mas por ter dois diplomas - guardados e não pendurados na parede para todos verem - de jornalista e de professor de língua inglesa e portuguesa. A primeira profissão muitíssimo pouco exerci; a segunda, exerci por poucos anos, apesar de gostar muito. Ambas demandam platéia e palco, seja a tela da televisão, as estações de rádio, as páginas do jornal, a internet ou o tablado do professor. E, aos 38 anos, saí das luzes da ribalta pra me tornar por opção dona-de-casa e mãe por 24/7 e esposa por uma fração disso.
Na minha rotina, não encontro tempo pra leitura, mas não o encontro porque não o procuro. E me corroo por isso. Sou preguiçosa, indisciplinada e contrariamente de um auto-controle que me dá pânico e me deprime. Não vivo um dia após o outro, sofro por antecipação e por tédio por não agir e só pensar no que poderia ter feito ou posso fazer mas não tenho vontade de. É estranho escrever e não ter o hábito regular e salutar da leitura, da viagem nas linhas, da imaginação, do conhecer o que outros escrevem e pensam, do espairecer, da comida para o cérebro. Com isso, posso até correr o risco de ser acusada de plágio ao escrever algo que acho ser seminal ou meramente diferente e nada mais é do que algo que já foi criado, digerido e divulgado.
Reclamo que não falo alemão direito, que não leio, que não estudo e sei qual é o problema. Sou eu mesminha. Me sinto e sou dominada pelas responsabilidades doméstico-maternais que me chamam incessantemente: lavar, passar, cozinhar, levar pra escola, estimular, dar de comer, dar banho, limpar o chão, tirar pó, lavar carro, tirar o lixo, lavar banheiro, limpar janelas...Manhêeee!!!! Seria um prazer, já que é foda, mas chega uma hora que deixa de ser, pois tudo que é repetitivo e esgotante passa a ser obrigação por não terminar nunca. Pra quem só faz isso, o alarme fica ligado o tempo todo. É preciso um tempo pra espairecer. E espairecer não quer dizer descansar, dormir, mas fazer algo diferente que demande outros músculos, outros órgãos. O trabalho de casa é extenuante e emburrecedor e mina nossa capacidade mental. E eu estou muito nova pra abraçar aquele alemão que deixa a gente doida. Por isso, eu preciso escrever. E pra mim, escrever significa não ter tempo pra ler. Back to square one.
Além de ser dona-de-casa, você trabalha?
Quando eu trabalhava como professora de inglês na Cultura Inglesa, meu marido brincava dizendo: "Além de ser professora, você trabalha?" Era uma piadinha que saiu do mesmo buraco de onde veio meu preconceito adolescente contra estudar Letras. E eu transfiro essa "piadinha" para o trabalho doméstico. O que se ouve muito, principalmente em sociedades machistas, é que quem fica em casa pode fazer seu tempo, pode descansar nos intervalos feitos por si mesma e que não existe compromisso com hora marcada. Portanto, só quem traz o dinheiro pra casa, quem põe o pão na mesa é que precisa descansar no fim do expediente, no final de semana, nas férias (Ãh? Férias? O que é isso?)
Eu sempre digo que o meu jeito de ganhar dinheiro é não gastando, me dedicando à família. E esse foi o acordo quando decidimos vir para cá. Mas, em vez de sucumbir ao destino, me sinto subutilizada e paradoxalmente esgotada. Ao mesmo tempo, eu tenho um auto-controle tão grande que eu sofro por pensar em estar sob o controle de compromissos profissionais e de chefes. Sou avessa à hierarquia, à submissão. Mas me submeto à minha própria tirania. Não sei deixar a vida me levar, empurrá-la com a barriga, deixar a água correr, deixar como está pra ver como é que fica, mas não sei também ser o agente e fico na passiva.
Me convenço que é melhor como está. Se tivesse que sair de casa todos os dias para trabalhar, teria que deixar minha filha na escola o dia inteiro; teria que limpar a casa no fim de semana ou ter alguém para limpá-la; teria que ir às compras depois do expediente; se a filha ficasse doente, teria que ter uma babá ou faltar ao trabalho, pois não tenho familía por perto. Não veria minha filha crescer.
Que prazer esse sentimento de realização, essa sensação de ser produtiva me daria? Seria ele verdadeiro? Talvez. Existem milhares de mulheres que trabalham, são mães e esposas. Se sentem realizadas e se gabam por isso. Bom pra elas. Mas acho difícil conseguir ser bom em tudo ao mesmo tempo. Alguma coisa, no meu caso, sairia mal feita e como eu me conheço, teria uma síncope por isso. Me culpo por não ser tão flexível, apesar de que aqui na Alemanha não estou tão por baixo, pois ser "só" dona-de-casa e mãe tem seus méritos -ao contrário do que acontece no Brasil, onde ao "só" cuidar dos filhos e afazeres domésticos, ou você está desempregada ou é vagabunda ou é dondoca.
Quando meu pai foi internado e precisava de alguém com ele dia e noite, ouvi da ex-cunhada que o meu irmão não poderia ficar com meu pai à noite porque o trabalho dele dependia de estar alerta para dirigir nas ruas de São Paulo e que, se não dormisse, poderia sofrer um acidente e ela e o filho não poderiam viver sem ele ( o engraçado é que agora ela lhe deu um pénabu). E ela me disse: "por que a sua irmã que não trabalha não fica com o seu pai todas as noites já que ela não tem compromisso com ninguém?" Eu fiquei chocada. Isso vindo de uma mulher? E eu desci do meu chinelinho de feltro e disse que "o fato de ela ser dona-de-casa não quer dizer que não tem responsabilidades. Ela tem uma família que depende dela também." Me ofendi por também ser dona-de-casa e ter deixado minha filha de três anos de idade com meu marido para ir até o Brasil e ficar ao lado do meu pai por 10 dias antes que ele partisse. E por ter respondido ao comentário infeliz que fez, ela passou a me ignorar e, alguns dias atrás, disse que eu só penso no meu umbigo e o pior, que ela é melhor do que eu".
Já é muito difícil ouvir de um homem palavras de rebaixamento como essas, quanto mais de uma mulher. Me vem na idéia como muitas mulheres que trabalham se sentem superiores em relação às que não. Como se elas tivessem uma força superior dentro de si, como se fossem melhores, como se tivessem alcançado o ápice do sucesso em suas vidas e em suas carreiras. E me lembra uma citação que li num livro quando ainda estudava jornalismo, mas que naquela época não teve peso nenhum sobre o meu pré-conceito contra ser dona-de-casa, mas que agora o sendo me dá um certo acalanto: "We all want to be a success in life. Some achieve heights of fame in their fields, others live quiet lives. Yet who can say that they are not equally successful?"Esther York Burkholder (Nós todos queremos ser um sucesso na vida. Alguns alcançam o topo da fama em suas áreas, outros vivem vidas tranquilas. Entretanto, quem pode dizer que estes não são igualmente bem sucedidos?)
E assim me vejo: como uma pessoa que abraça suas responsabilidades, que tenta se admirar pelas pequenas, mas não menos importantes, realizações, e evita lamentar ( o que não quer dizer que não lamente. Prova disso é este post) o que deixa de fazer, fazendo o que é possível. Mas também que fica muito puxa da vida quando não tem seu esforço reconhecido. Por isso, nem venha me dizer que eu não tenho o que fazer pra escrever um post deste tamanho que nem eu mesma entendo, pois o escrevi entre tirar roupa da máquina, buscar a Lara no Kindergarten e por comida no fogo. Agora vou por louça na máquina ( é , ainda tenho este luxo) e já vou sair pra levá-la ao curso de pintura. Desculpem o desabafo. Já vou escovar os dentes.